
Maputo, 27 de Fevereiro de 2025
COMUNICADO DE IMPRENSA: Justiça Ambiental ganha batalha judicial contra o Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa: governo é agora obrigado a fornecer informações sobre o projecto
O Tribunal Administrativo da Cidade de Maputo (TACM) acaba de intimar o Gabinete de Implementação do Projecto Hidroeléctrico de Mphanda Nkuwa (GMNK) e o Ministério de Recursos Minerais e Energia (MIREME) para que forneçam as informações solicitadas pela associação moçambicana Justiça Ambiental (JA!). Em sede do processo nº 63/2024, a JA! havia recorrido ao TACM solicitando a intimação do GMNK e do MIREME, para que fornecessem informações relativas à salvaguarda dos direitos fundamentais das comunidades locais afectadas pela implementação da controversa barragem de Mphanda Nkuwa, proposta para o Rio Zambeze na província de Tete.
Historial
A batalha pelo acesso a informações relacionadas com a mais recente etapa do projecto de Mphanda Nkuwa, vem desde 2019. Desde então, a JA! tem feito inúmeras e sucessivas tentativas de obter informações junto ao GMNK, por meio de cartas e até encontros, a respeito dos estudos que serão realizados e respectivos termos de referência, de que forma serão integradas novos componentes nos estudos (tendo em conta que questões como as mudanças climáticas, por exemplo, nunca foram contempladas em estudos anteriores), de que forma o projecto irá garantir que as vozes e os direitos das comunidades locais serão respeitados, entre várias outras questões. Apesar de uma aparente abertura para dialogar com a JA!, o GMNK sempre se limitou a responder de forma evasiva, superficial e sem disponibilizar nenhum dos documentos solicitados.
A 6 de março de 2024, uma vez mais, a JA! solicitou formalmente informações sobre as medidas de protecção dos direitos fundamentais das comunidades locais. No entanto, a resposta do GMNK foi mais uma vez superficial, limitando-se a afirmar que o processo de actualização dos estudos técnicos estava em andamento (desculpa que nos tem sido servida desde Abril de 2021). O MIREME, por sua vez, nem respondeu à solicitação, ignorando completamente a carta enviada pela JA!.
Essa postura, tanto do GMNK quanto do MIREME, denota uma tentativa desastrosa de se eximir da responsabilidade de fornecer informações essenciais ao processo de implementação do projecto, além de impedir a devida consulta pública sobre a legalidade do projecto. As informações solicitadas deveriam estar disponíveis, pois serviriam para garantir a transparência, legalidade e acompanhamento preventivo dos impactos sobre os direitos das comunidades afectadas. O secretismo e obscurantismo que têm permeado este projecto desde o início (inclusive em etapas anteriores a 2018), além dos sérios riscos e impactos já identificados por inúmeros especialistas e organizações, levantam sérias dúvidas a respeito dos alegados benefícios apregoados pelo governo. Ao mesmo tempo, as comunidades locais vêm reportando situações de intimidações, ameaças, e até detenções arbitrárias contra aqueles que questionam o avanço do projecto. Como pode Mphanda Nkuwa realmente contribuir para desenvolver o país, se precisa de esconder os passos que dá e reprimir os principais afectados?
A 02 de Abril de 2024, a JA! decide escalar para o TACM, e submete um pedido para que este intime o GMNK a disponibilizar as informações solicitadas.
Os argumentos usados pelo Governo
Após ser notificado pelo tribunal, o GMNK alegou que as comunidades locais haviam sido envolvidas activamente, e que realiza encontros com as lideranças locais, com a sociedade civil e com os meios de comunicação para compartilhar informações sobre o projecto. O GMNK tentou ainda justificar a falta de informações alegando que os estudos ainda não haviam alcançado a fase de participação pública. No entanto, a alegação do GMNK de que a participação da comunidade se restringe ao processo de “audiência pública” – fase em que os estudos de viabilidade ambiental e social serão efectivamente apresentados – não reflecte um compromisso real com a consulta às comunidades, nem está em conformidade com a lei do procedimento administrativo, facto que o tribunal não hesitou em esclarecer. A Lei no 07/2014 é clara: as autoridades administrativas devem garantir a consulta pública e fornecer as informações solicitadas, salvo em casos de documentos classificados como secretos ou confidenciais, o que não é o caso.
Em relação ao MIREME, este limitou-se a reproduzir as alegações do GMNK e requereu o indeferimento do pedido de intimação, alegando que o pedido era falso, precipitado e presunçoso. Aparentemente, o MIREME acha ‘presunçoso’ que solicitemos informações públicas sobre um projecto financiado com dinheiro público, mas não acha presunçoso decidir o destino de comunidades inteiras sem consultá-las. Interessante definição de presunção!
Uma decisão histórica
O Tribunal Administrativo da Cidade de Maputo decidiu então dar razão à JA!, determinando que o GMNK e o MIREME devem fornecer as informações solicitadas, independentemente do estágio em que os estudos se encontram, no prazo de 10 dias. O não cumprimento dessa decisão poderá resultar em crime de desobediência qualificada, além de responsabilidades civil e disciplinar, conforme o artigo 110, nº 2, da mesma lei.
Esta decisão histórica do TACM representa um momento decisivo para a defesa dos direitos das comunidades locais que estão a ser ameaçadas pelo projecto da barragem de Mphanda Nkuwa, e para a luta pelo direito à informação no nosso país. A decisão reafirma o direito constitucional de acesso à informação sobre projectos que afectam directamente o ambiente e as comunidades. Ao ordenar que o GMNK e o MIREME forneçam as informações solicitadas, independentemente da fase em que se encontram os estudos, o tribunal estabelece que a transparência não pode ser adiada ou condicionada a cronogramas governamentais arbitrários.
Esta decisão cria também uma ferramenta legal que outras organizações da sociedade civil e/ou comunidades afectadas por megaprojectos poderão utilizar em casos semelhantes, invocando este precedente para exigir maior transparência.
“A JA! congratula-se com esta decisão, e reiteramos que nenhum projecto dito de desenvolvimento deverá avançar sem disponibilizar toda a informação necessária e requerida pelas comunidades locais e demais actores sociais, para que esta informação possa ser devidamente avaliada, debatida, e assim passemos a tomar melhores decisões de desenvolvimento. Esta decisão é, também, um grande passo rumo à materialização do direito a dizer NÃO a megaprojectos que não consigam comprovar os seus alegados benefícios, ou que estejam já implicados em violações de Direitos Humanos, como é o caso de Mphanda Nkuwa. Nada para nós sem nós!”
– Anabela Lemos, directora da Justiça Ambiental JA!
Acórdão No 65/2024 na íntegra (carregar documento)
Leia mais sobre os riscos ambientais, sociais, climáticos e económicos associados à barragem de Mphanda Nkuwa (carregar documento)
Resumo / visão geral das preocupações em torno do projecto de barragem hidroeléctrica de Mphanda Nkuwa, proposta para o rio Zambeze, província de Tete, Moçambique
por Justiça Ambiental JA! / jamoz2010@gmail.com
Versão de Fevereiro de 2025
INTRODUÇÃO
O projeto da barragem de Mphanda Nkuwa (MNK), proposto há mais de duas décadas, é um projeto da era colonial que ressurgiu como uma solução para aumentar as exportações de energia para a África do Sul, permitindo a Moçambique aumentar a sua capacidade de obter divisas. O projeto está agora a ser promovido a um custo de 4,5 mil milhões de dólares, dos quais 2,4 mil milhões para a barragem e a central eléctrica e 2,1 mil milhões para as linhas de transporte.
A MNK seria a terceira maior barragem a ser construída no curso principal do rio Zambeze e uma das muitas outras barragens na bacia, se considerarmos os afluentes do Zambeze. A sua localização na bacia do baixo Zambeze, apenas 60 km a jusante da atual barragem de Cahora Bassa, com 2 075 MW, confere-lhe caraterísticas únicas e torna-a vulnerável e crucial para determinar a saúde dos ecossistemas a jusante. Tal como atualmente concebida, a central hidroelétrica de MNK tem uma capacidade de produção de 1.500 MW, com 60% (900 MW) desta capacidade destinada à exportação e o saldo de 600 MW (40%) reservado ao consumo interno em Moçambique. A entrada em funcionamento da MNK está prevista para 2030, sendo que cerca de 2 anos são necessários para o planeamento e conceção, enquanto a construção deverá demorar 6 anos.
O projeto foi revitalizado pelo governo moçambicano em 2018, com a criação do Gabinete de Implementação da Barragem de Mphanda Nkuwa (GMNK), sob a tutela do Ministério dos Recursos Minerais e Energia (MIREME). O GMNK está alegadamente a atualizar estudos que foram feitos no passado, mas não estão disponíveis publicamente quaisquer Termos de Referência ou mais detalhes sobre estes estudos. Em dezembro de 2023, o governo moçambicano e as empresas estatais Eletricidade de Moçambique (EDM) e Hidroelétrica de Cahora Bassa (HCB) assinaram um acordo de parceria com um consórcio privado composto pela Électricité de France (EDF), TotalEnergies e Sumitomo, para o desenvolvimento da barragem hidroelétrica de Mphanda Nkuwa. Este contrato foi assinado antes da realização de uma única reunião de consulta comunitária com as pessoas que vivem na região e que continuam a ser os proprietários legais da terra. Ainda mais preocupante, por volta de setembro de 2024, pelo menos 4 famílias da zona foram surpreendidas e reportaram ao JA! a construção de marcos de betão com as iniciais do projeto (MNK) dentro das suas terras, sem que lhes tenha sido dada qualquer informação ou sem qualquer tipo de consulta realizada pelo governo ou empresas envolvidas. Trata-se de uma clara violação do direito ao consentimento livre, prévio e informado, podendo ser qualificada como invasão de propriedade privada e usurpação de direitos.
Os alegados benefícios do MNK baseiam-se apenas no discurso político e são duvidosos face às alterações climáticas e ao facto de que a barragem será prejudicial para os ecossistemas a jusante, bem como para a saúde e segurança humana, levando à perda de meios de subsistência das
comunidades a jusante. Neste documento, apresentamos brevemente algumas das principais preocupações sobre este projeto, com base em mais de 24 anos que a JA! tem vindo a trabalhar nesta questão, realizando pesquisas e trabalhando com as comunidades locais, e em conclusões e estudos feitos por outros actores.
AMBIENTAL
A barragem de Mphanda Nkuwa influenciará mais uma vez o caudal do rio Zambeze, que já suporta Kariba e várias outras barragens e que deverá acolher outras – como a barragem de 2 400 MW de Batoka Gorge, no Zimbabué / Zâmbia. Uma das consequências ambientais mais diretas é o impacto na biodiversidade devido à destruição dos sistemas de irrigação a jusante da barragem. Esta perturbação afectará a aquicultura no delta do rio Zambeze. A Organização das Nações Unidas (ONU) discordou do projeto da barragem de Mphanda Nkuwa, considerando-o “provavelmente o projeto de grande barragem menos aceitável do ponto de vista ambiental em África”.
O atual regime de caudal de Cahora Bassa não satisfaz os requisitos ambientais e sociais de caudal e está a ter um efeito devastador no delta. Muito trabalho tem sido realizado por diferentes instituições, incluindo a Fundação Grua e a Universidade Eduardo Mondlane (UEM) para que a barragem de Cahora Bassa cumpra os requisitos de caudal ecológico. No entanto, a MNK foi concebida com o atual regime de caudal prejudicial de Cahora Bassa e é reconhecido no EIA anterior da MNK que as alterações no regime de caudal de Cahora Bassa para ser mais justo do ponto de vista ambiental e social terão um efeito prejudicial na viabilidade económica da MNK. Portanto, se a MNK avançar, não haverá hipótese de ter um rio Zambeze sustentável e um delta a jusante.

Em 2011, o JA comentou extensivamente o Estudo de Impacto Ambiental feito pela empresa de consultoria moçambicana Impacto, levantando sérias preocupações sobre a forma como os estudos tinham sido conduzidos, a desconsideração de vários elementos importantes (por exemplo, a insuficiência de dados para a análise dos sedimentos, não podendo assim fornecer uma análise científica válida, a falta de rigor dos métodos, o otimismo desmesurado em relação aos riscos ambientais e outros), e recomendou uma série de estudos e análises adicionais a serem feitos. Mas mesmo este ridículo EIA concluiu que “o projeto da barragem de Mphanda Nkuwa é ambientalmente viável, e os seus benefícios serão superiores aos seus impactos negativos, se estes forem devidamente minimizados”. Dado o péssimo historial de Moçambique no que diz respeito aos impactos dos mega projectos, há muito poucas razões para acreditar que os impactos negativos do MNK serão efetivamente minimizados. Além disso, devemos então considerar, com razão, a partir desta avaliação do EIA, que se os impactos negativos não forem devidamente minimizados, este projeto não deve ser considerado viável.
A falta de análise dos impactos cumulativos das numerosas barragens existentes e planeadas na bacia do Zambeze é também uma grande preocupação. Por exemplo, mais de 90% das bacias hidrográficas do Zambeze estão represadas e uma diminuição estimada de 70% na carga de sedimentos é causada apenas pela barragem de Cahora Bassa. Assim, o planeamento do MNK ou de qualquer barragem requer uma análise estratégica da bacia do Zambeze para compreender os impactos cumulativos nos ecossistemas. Infelizmente, e por conceção propositada, os EIAs apenas
analisam os impactos do projeto específico, o que facilita a compartimentação dos diferentes impactos, e este processo subestima sempre a verdadeira escala dos impactos negativos. Um dos consultores que trabalhou num dos EIAs anteriores, mencionou que os riscos para a saúde do delta do Zambeze são “morte por mil cortes”. É sempre possível, com um pouco de manipulação criativa, justificar mais um projeto, mas os impactos cumulativos foram sistematicamente ignorados nas fases anteriores do processo – e continuam a sê-lo – e podemos ver claramente os efeitos desta abordagem na região do Delta e ao longo das margens do rio. O recuo do delta, a secagem das zonas húmidas e a grande erosão são alguns dos impactos visíveis que já se podem observar ao longo do Zambeze.
SOCIAL E DIREITOS HUMANOS
Tete é a província dos mega projectos e, não por acaso, dos grandes conflitos de terra. Os traumas colectivos sobre a forma como as empresas mineiras Vale ou Jindal afectaram as populações da província marcam o povo de Tete de uma ponta à outra. Não há muito mais terra arável de qualidade onde os agricultores de subsistência possam ser reinstalados. As famílias reinstaladas pelas empresas mineiras continuam à espera de terras machamba (agrícolas) adequadas que lhes foram prometidas mas nunca entregues. As comunidades que serão mais afectadas pelo MNK são os pescadores, os mineiros artesanais e os agricultores, que não vivem uma vida de abundância, mas têm peixe, cabras, legumes e frutas suficientes para comer todos os dias, e dependem do rio e das suas margens para tudo. É totalmente irrealista acreditar que eles seriam realojados de forma adequada e justa noutro local onde estão longe do rio e não têm terra arável. O que está consagrado no regulamento de reassentamento de Moçambique, de que todos os cidadãos têm o direito de ser reassentados em condições iguais ou melhores do que o seu anterior nível de vida, ou mesmo os direitos básicos consagrados nos instrumentos regionais e internacionais de Direitos Humanos que Moçambique ratificou, estão a ser repetidamente violados em todos os outros processos de reassentamento na província, e a forma como o projeto MNK tem vindo a avançar nos últimos 5 anos dá fortes indicações de que o mesmo irá acontecer novamente.
No caso da barragem MNK, como em tantos outros, o risco de fracasso do projeto está a ser suportado de forma desproporcionada pelos indivíduos que têm menos poder para determinar o sucesso do projeto. Ao longo dos anos em que a JA! tem vindo a trabalhar com as comunidades da região, assistimos claramente a um momento em que as pessoas estavam entusiasmadas com as perspectivas da barragem e optimistas quanto à obtenção de emprego e desenvolvimento na sua área. Foram feitos estudos, as empresas e o governo visitaram a área, fizeram um inventário das pessoas que lá viviam e dos seus pertences, e disseram a todos que não podiam construir mais nada, investir nas suas casas, porque não seriam compensados por nada que não tivesse sido registado. Passaram-se anos sem que se ouvisse mais nada do governo ou das empresas. As pessoas viveram num limbo durante algum tempo, os jovens abandonaram a comunidade, ninguém quis investir na melhoria das suas casas ou das infra-estruturas comunitárias. A controvérsia e a falta de comunicação que caracterizaram este projeto desde o início moldaram significativamente os imaginários e o tecido social nesta área, mesmo antes do início da construção.
A comunidade estava lentamente a voltar ao normal quando o projeto da barragem reapareceu nas notícias em 2018-2019, quando o governo decidiu que o MNK era novamente uma agenda governamental de alta prioridade e criou o gabinete de implementação de Mphanda Nkuwa
(GMNK). Nada foi oficialmente comunicado às comunidades locais que serão diretamente afectadas até meados de 2022, a informação circulava apenas em Maputo (e internacionalmente). Quando estas notícias chegaram às comunidades locais que vivem junto ao rio Zambeze, levantaram muitas preocupações e questões. Muitas pessoas têm vindo a expressar que não querem deixar a área junto ao rio, e não aceitariam ser reassentadas por causa da barragem. Muitos membros da comunidade também levantaram questões relacionadas com o passado – quem os iria compensar por todos os anos durante os quais foram impedidos de construir novas casas e novas infra-estruturas nas aldeias?
Só em agosto de 2022 é que a GMNK fez a sua primeira “reunião” com a comunidade local de Chirodzi-Nsanague, mas sem abrir espaço para os membros da comunidade fazerem comentários ou perguntas. Pouco depois, os parceiros internacionais e as empresas concorrentes à construção da barragem também visitaram a zona. A JA começou a receber queixas de que a população local estava a ser instruída para não levantar críticas sobre a barragem, que deviam dar as boas-vindas ao projeto e não fazer perguntas. Os relatos de intimidação e repressão têm vindo a aumentar desde que o governo e as empresas começaram a visitar a zona, seguindo uma tendência problemática que, infelizmente, conhecemos bem. Os membros da comunidade pediram o apoio de JA! para os informar sobre os seus direitos, incluindo a forma de defender os seus direitos consuetudinários à terra. O governo local, alegadamente seguindo ordens do governo central, fez esforços para impedir que os membros da comunidade participassem em formações legais organizadas pela JA – incluindo ameaçando os seus líderes, criando desinformação e divisão na comunidade, e até mesmo detendo arbitrariamente membros da comunidade depois de terem ido a reuniões da JA!
Um exemplo disso foi em novembro de 2022, quando a JA organizou o seu 6o Workshop de Maputo sobre Impunidade Corporativa e Direitos Humanos em Maputo, que reuniu representantes de várias organizações da sociedade civil, representantes do governo, académicos, advogados, activistas e pessoas afectadas por mega projectos de muitas províncias do país, incluindo o líder comunitário de Chirodzi-Nsanangue, uma das comunidades em risco de ser reassentada se a barragem MNK proposta for construída. Enquanto estava em Maputo, o líder recebeu vários telefonemas de membros da comunidade avisando-o de que as autoridades locais estavam muito descontentes com a sua deslocação a Maputo. Poucos dias depois de regressar a casa, o líder recebeu uma notificação para se apresentar no Comando Distrital de Marara. Ao chegar ao Comando, o líder ficou detido durante 10 horas, foi-lhe negado o direito de ser acompanhado pelo advogado que estava lá para o assistir, foi ameaçado de várias formas e acusado de ser terrorista, foi interrogado sobre a sua viagem a Maputo pelo Comandante Distrital de Marara, por um agente dos Serviços Nacionais de Investigação Criminal (SERNIC) e por um representante do Ministério da Defesa. Por fim, foi-lhe ordenado que indicasse os nomes de todos os membros da sua comunidade que se tinham deslocado a Maputo para participar no Workshop. O líder foi libertado por volta das 18h30 sem mais esclarecimentos. Os membros do JA! que se encontravam no Comando para dar apoio ao líder foram também acusados de terrorismo, e informados de que não deveriam estar a prestar informações às comunidades locais sobre os impactos das barragens, ou a discutir os problemas causados por outros mega-projectos no país.
Poucos dias depois, as outras 10 pessoas de Chirodzi e Chococoma que tinham participado no Workshop foram também notificadas para se apresentarem no Comando Distrital de Marara no dia 8 de dezembro, incluindo a pessoa focal do JA! na comunidade. Surgiu um grande movimento de
solidariedade com os membros da comunidade ameaçados, de várias partes do país e até de outros países. Quando os 10 comunitários chegaram ao Comando Distrital, no dia 8, as notícias sobre o facto estavam a circular amplamente nas redes sociais e em algumas rádios, e o JA! estava a receber dezenas de vídeos de solidariedade de pessoas de todos os cantos do mundo. Os 10 membros da comunidade foram também interrogados sobre a sua participação no Workshop, com a presença intimidatória de polícias armados. O ponto focal do JA! foi interrogado separadamente, tendo-lhe sido pedido que abandonasse a sala, e o resto da equipa do JA! não foi autorizado a entrar. Todos foram libertados algumas horas mais tarde.
Desde dezembro de 2022, estes e outros membros da comunidade foram chamados para interrogatório mais algumas vezes, quer pela polícia quer pelo governo local. Tudo isto parece ser uma estratégia para intimidar os membros das comunidades que serão afectadas pelo projeto da barragem MNK e impedi-los de defender os seus direitos. Quando o governo local visita a comunidade, sabe bem quais os membros da comunidade que participaram nas reuniões da JA! e frequentemente faz ameaças ou “aconselha-os” a não irem contra este projeto. A maior parte dos líderes locais de Chirodzi e de outras comunidades da zona receberam agora ordens diretas ou indirectas do governo local para não trabalharem com a JA!, para não realizarem reuniões sobre o projeto e para não distribuírem os materiais de formação que recebem de nós. O nível de intimidação e repressão está a aumentar e parece que a única preocupação do governo é silenciar a dissidência, em vez de trabalhar com a população local para compreender verdadeiramente as suas frustrações e resolver as queixas. Ao mesmo tempo, a resistência local tem vindo a aumentar, à medida que as pessoas tomam consciência dos seus direitos e se mobilizam para os defender. As tensões sociais que estão a surgir nesta área são muito preocupantes e fazem-nos lembrar as fases iniciais da implementação dos projectos de gás em Cabo Delgado, ou das minas de carvão em Tete. A história de outros megaprojectos em Moçambique mostra que as vozes dissidentes são caladas quando o governo quer implementar um chamado “projeto de desenvolvimento” – sendo ameaçadas, detidas, subornadas ou forçadas a abandonar a área. Isto contribuiu para consequências catastróficas noutras partes do país, incluindo violência e violência baseada no género, conflitos armados, perturbação da comunidade e aumento do consumo de álcool e drogas. Mesmo antes da sua construção, a barragem MNK já está a provocar um aumento das violações dos direitos humanos das comunidades locais e indígenas.
CLIMA
Existe um duplo nexo entre as mega-barragens e a crise climática. A primeira parte é a forma como as barragens contribuem efetivamente para as alterações climáticas. A criação de uma albufeira contribui imensamente para as alterações climáticas – quer pela simples condição de mudança de ambiente do solo para a água, o que provoca alterações na taxa de absorção ou reflexão dos raios solares, quer pela produção ou libertação dos seus próprios gases, por exemplo o dióxido de carbono CO2 (proveniente da decomposição aeróbica da biomassa) e o metano CH4 (proveniente da decomposição anaeróbica da matéria lenhificada). Estima-se que as emissões de gases com efeito de estufa das barragens ascendam a cerca de mil milhões de toneladas por ano.
A segunda parte é que, para além de contribuírem para isso, as mega-barragens são também extremamente afectadas pelos impactos de um clima em mudança. Numerosas barragens em todo o
mundo não conseguiram cumprir os objectivos de produção devido a alterações do caudal, da precipitação, das secas, etc., muitas delas provocadas pelas alterações climáticas e que se prevê que venham a agravar-se. Na análise de Richard Beilfuss em 2012, “A Risky Climate for Southern African Hydro”, ele analisa os riscos hidrológicos e as consequências das barragens no Zambeze e explica por que razão é tão crucial que qualquer projeto de barragem incorpore cenários de alterações climáticas na conceção e funcionamento da energia hidroelétrica. Para além disso, as previsões do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) para a região são também terríveis e colocam muitos riscos na produção de energia hidroelétrica. A JA também efectuou algumas simulações de modelos climáticos com a Universidade da Cidade do Cabo e encontrou resultados semelhantes de agravamento das secas e inundações mais intensas para a bacia do Zambeze, o que coloca riscos adicionais ao desenvolvimento da energia hidroelétrica. Além disso, deve notar-se que as barragens, especialmente as barragens hidroeléctricas que exigem que os reservatórios sejam mantidos a níveis elevados para satisfazer as necessidades de produção, agravam os impactos das cheias. O papel de Cahora Bassa no agravamento das cheias está bem documentado e estudado.
No que se refere ao MNK, as considerações relativas às alterações climáticas nunca foram incorporadas na conceção do projeto em anos anteriores. Agora, o Diretor da GMNK afirma que será necessário analisar as questões climáticas, mas, ao mesmo tempo, esconde-se repetidamente de divulgar quaisquer pormenores ou termos de referência destes e de outros estudos. É muito provável que, mesmo que estes componentes sejam tidos em conta, os impactos das alterações climáticas no projeto sejam largamente subestimados e, consequentemente, que a produção projectada da barragem de Mphanda Nkuwa seja largamente sobrestimada. É também muito provável que a produção de energia hidroelétrica seja reduzida em troca de mais ciclones.
Por conseguinte, é evidente que as alterações climáticas previstas para a bacia do Zambeze aumentarão o risco económico do projeto MNK planeado. Isto é mais preocupante considerando que as barragens em geral são projectos difíceis de fazer projecções económicas. Tanto o estudo do Banco Mundial como o da Comissão Mundial de Barragens (WCD) concluíram que 50% das barragens não atingiram os objectivos económicos projectados. As alterações climáticas não só agravarão os impactos das secas, os períodos de baixa pluviosidade e os impactos das inundações, como também tornarão ainda mais difícil projetar a carga de base, os caudais disponíveis para produção, os requisitos de caudal mínimo, etc., para as barragens existentes e planeadas.
SISMICIDADE
As grandes barragens podem falhar, quer devido à falha da parede da barragem causada por má construção ou danos causados por terramotos, quer devido ao galgamento devido a inundações. No que diz respeito ao risco sísmico, a situação em Moçambique é bastante complicada. O país está localizado na vizinhança do que é conhecido como a fronteira entre a Núbia e a Somália e, de facto, está situado numa zona de falha altamente ativa chamada Shire, que se estende para sul do país desde o ponto sul do Malawi até quase Maputo. O país é considerado como estando numa zona sismicamente ativa, no entanto, devido à fraca manutenção de registos na área, a capacidade dos cientistas para determinar o potencial para grandes terramotos é severamente limitada. Por exemplo, um terramoto que ocorreu a 23 de fevereiro de 2006 nesta área foi quase 13 vezes maior do que se pensava ser possível ao longo dessa falha!
Chris Hartnady era um sismólogo de renome mundial da Universidade da Cidade do Cabo e considerado um dos maiores especialistas em sismologia da África Austral. Escreveu “Critical review of the EIA and Seismic Hazard reports for the Mphanda Nkuwa project”1, onde desacreditou as conclusões do EIA do projeto e levantou preocupações em relação ao projeto MNK, que está a ser concebido para resistir a sismos que o Professor Hartnady considera serem alarmantemente pequenos, tendo em conta o potencial para grandes sismos nas placas próximas do local da barragem proposta. A barragem de Mphanda Nkuwa estaria localizada a menos de 200 km do coração da zona de falha do Shire Trough. Além disso, a forma do Shire Trough significa que a albufeira da barragem poderia aumentar o potencial sísmico das placas circundantes em resultado do aumento do peso da água – um fenómeno conhecido como “sismicidade desencadeada pela albufeira” (RTS).
As melhores práticas internacionais exigem uma monitorização contínua da atividade sísmica na área circundante das grandes barragens. A fraca manutenção de registos sísmicos tem limitado a capacidade dos cientistas de determinar o potencial de grandes terramotos em Moçambique. Uma abordagem responsável ao MNK seria assegurar que o terramoto máximo de projeto da barragem seja prudentemente determinado. Neste caso, tal ação exigiria provavelmente a “sobreconcepção” da barragem para segurança sísmica e um aumento dos custos do projeto. Continuar a negligenciar estes riscos, como tem sido o caso até agora, poderia transformar um projeto prejudicial num projeto catastrófico.
GOVERNAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
Convidamo-vos a ler o livro do Dr. Allen Isaacman “Aproveitar o Zambeze: Como a barragem planeada de Mphanda Nkuwa em Moçambique perpetua o passado colonial”2.
Tem sido amplamente analisado e relatado como Moçambique não tem estado a beneficiar dos seus vastos recursos naturais. Vimos o boom e a falência do carvão e estamos a vê-lo com o gás. Todas as variáveis que contribuem para esta situação continuam a existir no que diz respeito a Mphanda Nkuwa – empresas transnacionais poderosas que corrompem os governos locais, elites corruptas que vendem o país, o mesmo regime orientado para o lucro e para a exportação que define as regras do jogo e os mesmos organismos nacionais, regionais e internacionais ineficientes e, por vezes, cúmplices que supervisionam tudo isto. Isto torna óbvio que as comunidades locais continuarão a não ganhar com a barragem de Mphanda Nkuwa, as grandes empresas envolvidas continuarão a obter contratos altamente lucrativos e continuaremos a trocar o nosso futuro sob a crise climática por ganhos a curto prazo para algumas pessoas. Outras organizações da sociedade civil têm estado a expor este padrão e a apontar os riscos deste modelo.
Na reunião entre a equipa do JA! e o gabinete de Mphanda Nkuwa, em 2021, os representantes do governo deixaram claro que estavam a ser envidados esforços para garantir a “bancabilidade” do projeto. Não foi partilhado connosco qualquer cronograma real, diretrizes para a participação pública ou razões para avançar com este projeto sem um debate público sobre as prioridades energéticas, apesar das muitas perguntas feitas na altura e em cartas subsequentes. Reiteraram
1 This study is included in the link provided at the end of this document. 2 This study is included in the link provided at the end of this document.
muitas vezes que a viabilidade económica era primordial e que as outras questões eram secundárias, uma vez estabelecida essa viabilidade. Na altura, a JA solicitou cópias dos estudos ambientais e sociais relevantes ou documentos que definissem os estudos, mas ainda estavam a fazer uma “avaliação inicial” do que era necessário. Passados mais de três anos, a JA! continua a enviar cartas à GMNK a solicitar os termos de referência dos estudos que estão a ser feitos, não tendo sido partilhados quaisquer documentos relevantes até à data.
Outra iniciativa que o governo tem vindo a promover são os “cursos de certificação de energia hidroelétrica”, em parceria com a Agência Norueguesa de Cooperação e Desenvolvimento (Norad) e a Associação Internacional de Energia Hidroelétrica (IHA). Trata-se, basicamente, de um sistema de certificação que tenta levar os projectos hidroeléctricos a atingir os melhores padrões da indústria. No entanto, a metodologia que utiliza é profundamente imperfeita e propositadamente concebida para carimbar todos os projectos – como explicámos no nosso artigo aqui..
As barragens são também muito conhecidas pelas suas enormes propinas nos contratos de construção. O escândalo de Belo Monte no Brasil e outros mostraram-nos o padrão, e os ingredientes estão reunidos para que o mesmo aconteça com a MNK. As elites políticas moçambicanas estão envolvidas na maioria dos megaprojectos no país e os últimos anos mostraram até que ponto a corrupção, a pressão dos doadores, o conluio com as elites internacionais e a falta de responsabilização mergulharam o país em profundas crises interligadas.
É catastrófico que o governo moçambicano, e os parceiros de desenvolvimento, continuem a insistir no mesmo caminho de ‘desenvolvimento’ através de mega investimentos, onde continuamos a cair nas mesmas armadilhas, e continuamos a ignorar as tensões sociais que se acumulam (e rebentam) por todo o lado devido a conflitos de terra, injustiças crescentes e a necropolítica da nossa governação. Já estamos a pagar o custo destas escolhas, e as coisas podem potencialmente piorar muito, especialmente se continuarmos a forçar as pessoas historicamente negligenciadas a abandonar as suas terras e a despojá-las totalmente de direitos, meios de subsistência e um sentido de propósito. Como já podemos ver, o projeto da barragem de Mphanda Nkuwa está a começar a seguir exatamente o mesmo caminho que vimos noutras partes do país e, infelizmente, é provável que piore.
ACÇÕES LEGAIS EM CURSO
Não temos razões para acreditar que a barragem de Mphanda Nkuwa beneficiaria o país no seu todo – ou mesmo que levaria a eletrificação rural àquela zona. Tendo em conta as diferentes preocupações aqui levantadas – desde os fracos estudos de avaliação de impacto, aos riscos sísmicos, às vulnerabilidades climáticas, à intimidação das comunidades locais e dos activistas, à destruição de um hotspot de biodiversidade – o que precisamos urgentemente é de parar este projeto, pelo menos até que estas e outras questões sejam adequadamente respondidas. Em vez de esclarecer todas as questões que têm sido levantadas ao longo de muitos anos pelas comunidades locais, especialistas e organizações da sociedade civil, a estratégia do governo tem sido a de obstruir o acesso à informação e manipular ou intimidar as comunidades locais, o que não deve ser normalizado nem aceite. Em dezembro de 2022, o JA! submeteu uma petição para parar o projeto MNK, à Assembleia da República, em nome de 2.600 moçambicanos, que acreditam que o projeto
não pode avançar até que todas as questões candentes sejam respondidas. Passados mais de 2 anos, continuamos a aguardar uma decisão sobre a petição.
Adicionalmente, e precisamente por causa da relutância do governo e do Gabinete de Implementação de Mphanda Nkuwa em particular em disponibilizar os planos e estudos relacionados com o projeto, foi intentada uma ação judicial para solicitar informações ao governo no Tribunal Administrativo de Maputo em março de 2024. Em Dezembro do mesmo ano, o tribunal decidiu a favor da JA!, ordenando que o governo fornecesse as informações solicitadas num prazo de 10 dias.
Link para pasta com estudos ambientais, sociais, climáticos e sísmicos mais detalhados:
https://drive.google.com/drive/folders/1WLI0jNf0VwNtRznADEibRxX7BfHzC4F8