Joshua Matanzima (Universidade de Queensland)
A 17 de maio de 1960, a barragem de Kariba foi oficialmente inaugurada pela Rainha Mãe, no âmbito da sua visita real à então Federação Centro-Africana (CAF), constituída pela Niassalândia, Rodésia do Sul e Rodésia do Norte (actualmente Malawi, Zimbabué e Zâmbia, respectivamente). Situada na parte noroeste do Zimbabué, a barragem começou a ser construída em 1955 e ficou concluída em 1958. Foi projectada pelo engenheiro francês André Coyne e construída pela Impresit, uma empresa de construção italiana. A barragem foi construída com o único objetivo de produzir electricidade, para fornecer energia às indústrias em crescimento na Rodésia do Sul e às minas de Copperbelt na Rodésia do Norte, durante o período pós-Segunda Guerra Mundial. No entanto, mais tarde tornou-se um centro para muitas outras actividades sócio-económicas, incluindo a conservação, a caça, a exploração moderna, o turismo, a recreação e a pesca. Foi financiado pelo maior empréstimo que o Banco Mundial havia concedido até então (Scudder 2005). A barragem tem 128 metros de altura e 579 metros de comprimento ( conforme ilustrado na Figura 1). A barragem forma o Lago Kariba, que se estende por 280 quilómetros (170mi) e contém 185 quilómetros cúbicos (150,000,000acre⋅ft) de água.
Muro da barragem de Kariba
O muro da barragem bloqueou o fluxo natural do rio Zambeze (no desfiladeiro de Kariba) que sustentava a vida de muitos grupos de pessoas. A sua construção resultou em impactos ambientais e sociais a longo prazo, inaceitáveis, que foram extensamente estudados pelos professores Elizabeth Colson e Thayer Scudder ao longo de 60 anos (Colson 1971; Scudder 2005). No entanto, os resultados dos seus estudos baseiam-se em investigações realizadas na Zâmbia, sendo aqui discutido um resumo dos efeitos a longo prazo nos povos Tonga, Shnagwe e Korekore, do lado do Zimbabué. Mais de 57 000 pessoas, incluindo os povos de Tonga, Shangwe e Kore-kore, foram deslocados de ambas as margens do Zambeze.
Antes da construção da barragem de Kariba, as habitações das populações situavam-se nas proximidades imediatas do rio, de ambos os lados. A vida sociocultural e económica girava em torno do rio. Como ilustrado na Figura 2: a pesca, a agricultura ribeirinha e a criação de gado, constituíam a base da economia. Além disso, o rio tinha um significado religioso para os povos Tonga, Shangwe e Korekore. Tinha piscinas, corredeiras e desfiladeiros sagrados (de Victoria Falls até à confluência de Kafue) que homenageavam os seus espíritos, incluindo Nyaminyami, o deus do rio, e os antepassados (Saidi e Matanzima 2021). As pessoas tinham uma ligação mais forte com as paisagens ribeirinhas. Os lugares sagrados ao longo do rio, incluindo malende, os santuários para trazer a chuva, marcados pela presença de baobás, eram abordados com admiração e respeito e eram lugares de enterro para os chefes. As populações de ambas as margens do rio realizavam em conjunto cerimónias e rituais religiosos. O rio não era uma barreira na comunicação, pelo contrário, facilitava-a.
Mulheres Tonga a pescar com cestos no Zambeze, antes da barragem de Kariba.
Quando a barragem foi construída, houve uma separação permanente das comunidades. A população foi deslocada para dois países diferentes. Além disso, dentro de cada país, houve movimentos aleatórios de pessoas entre chefias, o que acabou por separar as pessoas (Matanzima e Saidi 2020). Desde finais da década de 1950, a maioria destas pessoas nunca mais teve oportunidade de se reunir.
Os bens culturais (casas, lugares religiosos) foram destruídos por maquinaria pesada utilizada para desobstruir estradas e inundações. Apesar do lago ter inundado os seus bens culturais, durante o período colonial, os povos Tonga e Shangwe foram impedidos de aceder à paisagem aquática por razões religiosas e económicas. Na era pós-colonial, apesar de terem conseguido um certo acesso, as indústrias do lago eram dominadas por grandes grupos étnicos, incluindo os Shona e os Ndebele. Por esta razão, as comunidades não receberam apoio adequado para se reunirem com os seus espíritos na água. A sua identidade fluvial foi excluída. Durante muito tempo, a população identificava-se com o rio, pois vivia nas suas margens, mas de um dia para o outro essa identidade foi perdida. Como resultado, passaram a ser identificados através de muitos nomes depreciativos, incluindo pessoas não civilizadas, infantis, preguiçosos e com dois dedos nos pés. A ligação ao rio que sustentava as economias, a vida social e a cultura, terminou abruptamente.
A longo prazo, a população ficou sem recursos naturais para [re]construir meios de subsistência sustentáveis, o que resultou num empobrecimento sócio-económico a longo prazo. Houve também deslocações secundárias. Em Mola, por exemplo, na década de 1960, os crescentes interesses de conservação em torno da barragem fizeram com que a população de Tonga fosse empurrada para o interior, onde entrou em conflito com os seus anfitriões por causa dos recursos naturais. Durante a Guerra de Libertação do Zimbabué, na década de 1970, foram novamente deslocados. Estas formas de deslocações secundárias agravaram o seu empobrecimento.
É essencial ter esses dados longitudinais relativamente aos efeitos das barragens por várias razões, incluindo as seguintes a) Os dados de longo prazo sobre as primeiras barragens a serem construídas nesta região, incluindo Cabora Bassa e Kariba, são essenciais porque podemos ganhar conhecimento para implementar nas nossas decisões contemporâneas de construção de barragens; b) Os dados longitudinais também podem ser usados em campanhas contra a construção de barragens, especialmente quando enfatizamos os seus impactos intergeracionais nas vidas e meios de subsistência das comunidades afectadas; c) além disso, esses dados podem informar e reforçar o trabalho de grupos da sociedade civil e de ONG’s como a “International Rivers”, a “RiverWatch” e a “EuroNatur”, cujo trabalho consiste em alcançar a justiça social e ambiental através da sensibilização para os impactos da construção de barragens; d) estamos numa melhor posição de avaliar a relevância das barragens a longo prazo e tomar decisões sobre o seu desmantelamento. O desmantelamento de barragens deve ser informado com base em informação adequada sobre as suas vantagens e desvantagens; e e) também conseguimos compreender as diferentes mudanças na governação das barragens ao longo do tempo e como isso afecta as comunidades (incluindo as comunidades deslocadas). No caso da barragem de Kariba, por exemplo, ela foi governada tanto por governos coloniais como pós-coloniais. São implementadas diferentes políticas sem ter em conta as comunidades afectadas, o que agrava a sua situação. Para além de Kariba, a validade dos dados longitudinais também foi realçada em estudos feitos por Brooke Wilmsen (Wilmsen 2016; Wilmsen e van Hulten 2017), sobre os impactos da reinstalação da barragem das Três Gargantas na China.
Os efeitos contínuos e a longo prazo das grandes barragens sobre as populações indígenas, levantam a questão controversa: será que precisamos de continuar a construir mais barragens? Nos últimos anos, temos assistido ao desmantelamento de mega-barragens, sobretudo no Norte global, por se terem tornado desnecessárias a longo prazo. Esta mudança na relevância das barragens leva-nos a [re]pensar as nossas decisões de construir barragens.
Na pressa actual de fazer a transição da utilização de combustíveis fósseis para energias limpas, para cumprir o objectivo de zero emissões líquidas (net-zero), as barragens estão a ser cada vez mais consideradas pelos governos como uma opção para a produção de energia limpa. Isto pode implicar que os governos venham a precisar de mais barragens que nunca. O que pode significar um desmantelamento mínimo das barragens. No entanto, é essencial considerar outras fontes de energia limpa, tais como os sistemas solares nos telhados, que tenham impactos mínimos nas comunidades humanas e no ambiente. As transições energéticas devem ser conseguidas através de métodos “justos” que não prejudiquem as comunidades indígenas e o meio ambiente. Devemos considerar a possibilidade de parar com a construção de barragens, especialmente quando são desnecessárias, de modo a considerar outras opções. O carácter desnecessário das barragens pode ser calculado através da análise custo-benefício e dos seus impactos sociais e ambientais globais a longo prazo. A investigação demonstrou que, na maioria dos casos, os custos de manutenção de uma barragem excedem os seus benefícios (Ansar et al. 2014; Scudder 2017, 2019).
Fontes bibliográficas:
Ansar, A., Flyvbjerg, B., Budzier, A., & Lunn, D. (2014). Should We Build More Large Dams? The Actual Costs of Hydropower Megaproject Development. Energy Policy, March 2014, 1-14. Obtido de SSRN: https://ssrn.com/abstract=2406852
Matanzima, J., & Saidi, U. (2020). Landscape, belonging and identity in Northwest Zimbabwe: A semiotic analysis. African Identities, 18(1–2), 233–251. https://doi.org/10.1080/14725843.2020.1777839
Saidi, U., & Matanzima, J. (2021). Negotiating Territoriality in North-Western Zimbabwe: Locating The Multiple-Identities of BaTonga, Shangwe, and Karanga in History. African Journal of Inter/Multidisciplinary Studies, 3(1), 61–74. doi: 10.51415/ajims.v3i1.864
Scudder, T. (2005). The future of large dams: Dealing with social, environmental institutional and political costs. Earthscan.
Scudder, T. (2017). The good megadam: Does it exist, all things considered? In B. Flyvbjerg (Ed.), The Oxford handbook of megaproject management (pp. 428–450). Oxford University Press.
Scudder, T. (2019). Large Dams: Long-term impacts on riverine communities and free-flowing rivers. Springer Nature.
Wilmsen, B. (2016). After the Deluge: A longitudinal study of resettlement at the Three Gorge Dam. World Development, 84, 41-54.
Wilmsen, B., & van Hulten, A. (2017). Following resettled people over time: The value of longitudinal data collection for understanding the livelihood impacts of the Three Gorges Dam, China. Impact Assessment and Project Appraisal, 35(1), 94-105. DOI: 10.1080/14615517.2016.1271542