Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Pôr Fim à Impunidade
Setembro 2023
A Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Pôr Fim à Impunidade (Campanha Global) é uma rede global de mais de 250 movimentos sociais, organizações da sociedade civil, sindicatos e comunidades afectadas pelas actividades das empresas transnacionais (ETNs). Tendo participado activamente nas negociações por um instrumento juridicamente vinculativo para regular as actividades das empresas transnacionais no âmbito do direito internacional dos direitos humanos, tal como mandatado pela Resolução 26/9, a Campanha Global gostaria de expressar as suas profundas preocupações relativamente ao Rascunho Actualizado do Tratado publicado em Julho de 2023 pelo Presidente do Grupo de Trabalho Intergovernamental de Composição Aberta (OEIGWG), o Embaixador da Missão Permanente da República do Equador.
É alarmante que o processo que conduziu ao rascunho actualizado tenha sido marcado por um nível inaceitável de arbitrariedade por parte do Presidente. Por exemplo, as semanas que antecederam a 8ª sessão do OEIGWG foram repletas de incoerências que levantam importantes preocupações processuais e éticas. Em primeiro lugar, o Presidente divulgou uma série de “Propostas Sugeridas pelo Presidente para artigos seleccionados do Instrumento Juridicamente Vinculativo” não solicitadas e inoportunas, completamente alheias ao processo de negociação, que depois foram impostas como um documento paralelo para as negociações. Além disso, apesar da redacção clara da Resolução 26/9, que afirma que o futuro Tratado se aplicará às empresas transnacionais e outras empresas de carácter transnacional, o Presidente procura alargar o âmbito para todos os tipos de empresas, incluindo PMEs e empresas públicas sem actividade transnacional. Em vez de facilitar as negociações sobre este assunto, o Presidente, através das suas “Directrizes para o Trabalho Intersessional“, ditou a sua própria interpretação incoerente tanto do mandato do Presidente como do processo de negociações da ONU, e arrogou-se ilegalmente os poderes de um juiz.
Embora o Presidente deva facilitar o desenrolar das negociações, mantendo a imparcialidade e baseando-se numa compreensão abrangente das propostas e manifestações das delegações – tal como estabelecido pelas estipulações da ONU sobre o “papel substantivo do presidente” – este novo texto revela que o Presidente ultrapassou consideravelmente o seu mandato. É evidente que a abordagem do Presidente se inclina mais para o julgamento do que para a facilitação, uma vez que ele escolhe as propostas em vez de consolidar as contribuições textuais apoiadas pela maioria dos Estados que têm estado activos no processo. Com este último rascunho, o Presidente faz-nos recuar pelo menos três anos nas negociações, beneficiando as empresas transnacionais e os seus aliados, em detrimento dos movimentos sociais, dos trabalhadores, dos camponeses e das comunidades afectadas.
De facto, embora o rascunho actualizado incorpore agora algumas exigências e propostas que vieram de alguns Estados e organizações da sociedade civili, uma análise inicial do texto revela que o seu conteúdo foi significativamente enfraquecido, incluindo nos artigos 6º a 9º; estes artigos constituirão, uma vez corrigida a sua redacção, pilares fundamentais do futuro Tratado. A Campanha Global efectuará uma análise técnica e jurídica aprofundada do rascunho actualizado, artigo por artigo, que será divulgada antes da 9ª sessão. No entanto, gostaríamos de destacar aqui algumas questões preocupantes e prementes relacionadas com o rascunho actualizado:
1) Várias propostas importantes de Estados empenhados foram excluídas ou enfraquecidas, mesmo tendo sido amplamente apoiadas por outros Estados e pela sociedade civilii. Ao mesmo tempo, foram mantidas propostas apresentadas por apenas um ou alguns Estados, não obstante a ausência de um apoio significativo por parte de outras delegaçõesiii.
2) Disposições fundamentais foram enfraquecidas ou inexplicavelmente suprimidas, apesar de nenhuma delegação tê-lo solicitado explicitamenteiv.
3) Propostas-chave para a elaboração de um instrumento forte e eficaz provenientes dos movimentos sociais e das comunidades afectadas foram suprimidas, enquanto as dos representantes das empresas transnacionais foram impostasv.
Tendo em conta o que foi apresentado acima, apelamos ao Presidente para que facilite as negociações na 9ª sessão em conformidade com o mandato da Resolução 26/9 do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, e com base no rascunho revisto e actualizado do Tratado com o registo das alterações (a única base legítima para as negociações), que inclui todas as propostas apresentadas pelos Estados nas duas últimas sessões. Exortamos igualmente aos Estados empenhados no processo a favor de um Tratado vinculativo a manterem-se vigilantes e a oporem-se a qualquer tipo de estratégia de desvio.
Por último, mas não menos importante, apelamos também ao Presidente para convocar uma consulta internacional inclusiva com todas as missões Estatais e assegurando também a participação de organizações da sociedade civil antes da 9ª sessão, para discutir o programa, a agenda e a metodologia para a 9ª sessão.
É tempo de transparência, de coerência, de colaboração e, acima de tudo, é tempo de justiça.
i O direito à informação, as acções colectivas, a participação nas reparações, as medidas cautelares, a lei aplicável, entre outros.
ii A maior parte das contribuições construtivas e importantes feitas pelos Estados empenhados do Sul Global não foram retidas. Para mais informações, ver a contribuição escrita da Campanha Global de Março de 2023, onde destacamos estas importantes propostas: https://www.stopcorporateimpunity.org/written-contribution-in-the-framework-of-the-inter-sessional-period/
iii Por exemplo, a palavra “obrigações” foi substituída por “responsabilidade”, tal como solicitado pelos EUA (seguido por alguns outros países). Esta proposta ignora o facto de que as empresas transnacionais já têm obrigações no âmbito da legislação em matéria de direitos humanos. Além disso, o conceito de “impacto negativo nos direitos humanos” foi integrado no artigo 1º e ao longo de todo o Tratado, apesar deste conceito ser juridicamente inadequado para este tipo de instrumento e para os seus objectivos.
iv Parágrafos essenciais foram inexplicavelmente suprimidos e/ou fortemente enfraquecidos, incluindo a proibição do recurso ao forum non conveniens nos artigos 7º e 9º, a disposição sobre sanções em caso de infracção (6.7) e sobre a influência indevida das ETNs (6.8). No artigo 7.º, outras disposições importantes sobre a inversão do ónus da prova (7.5) e a aplicação de medidas correctivas (7.6) foram também enfraquecidas pela nova redacção. Quanto ao artigo 8.º, cada disposição passa a incluir “Sem prejuízo dos princípios jurídicos do Estado…”. É importante referir que estas alterações reduzem substancialmente a capacidade do futuro instrumento de combater a impunidade das empresas e de assegurar mecanismos eficazes de responsabilidade jurídica, obstruindo assim o acesso à justiça.
v Por exemplo, o rascunho actualizado não estabelece obrigações internacionais nem mecanismos eficazes de responsabilidade jurídica para as ETNs, transformando o futuro Tratado num mero conjunto de orientações para os Estados desenvolverem a sua própria legislação em matéria de devida diligência. A partir daí, Estados poderosos próximos das ETNs argumentariam que já não há necessidade de um instrumento juridicamente vinculativo, uma vez que a lei de devida diligência seria suficiente para responsabilizar as ETNs. O rascunho actualizado nem sequer incorpora elementos do que poderia ser a base de uma legislação nacional sólida, que certamente não pode basear-se apenas nos mecanismos de diligência devida. Para consultar as principais propostas dos movimentos sociais e comunidades afectadas, aqui representadas pela Campanha Global, consulte: https://www.stopcorporateimpunity.org/frontiers-of-an-effective-binding-treaty/ e https://www.stopcorporateimpunity.org/written-contribution-in-the-framework-of-the-inter-sessional-period/