A crise eleitoral que se verifica em Moçambique desde a realização das eleições em Outubro de 2024, são resultado de um longo período de revolta e insatisfação, generalizada pelas condições de vida precárias, desigualdade social e de género, desemprego juvenil, índices de criminalidade nos principais centros urbanos, extrema vulnerabilidade aos fenómenos climáticos, dependência contínua de apoios económicos externos e violência política. Num contexto em que muitas foram as promessas de que a exploração dos nossos recursos naturais iria satisfazer as necessidades de mais de 30 milhões de moçambicanos, desde que iniciaram os licenciamentos e concessões as multinacionais estrangeiras e seus megaprojectos. No entanto, passados 20 anos para alguns destes projectos, os jovens moçambicanos e não só, veem as suas expectativas frustradas.
Aliado a isso, as diferentes classes sociais, profissionais e comunitárias começam a mostrar uma coragem destemida, e a sair às ruas para expressar a saturação social dos quase 50 anos de opressão. As comunidades afectadas pela indústria extractiva, encontraram a oportunidade para também fazer exigências sobre os benefícios que supostamente obteriam, porém, tais benefícios ficaram só escritos no papel, porque a miséria, o sofrimento e a falta de esperança são as únicos impactos da indústria extractiva que os moçambicanos nas zonas rurais directamente afectadas, sentem na pele a cada nascer do sol.
No distrito de Larde, na localidade de Topuito, decorre a extracção de areias pesadas pela empresa irlandesa Kenmare, que após 20 anos de exploração, reassentamentos injustos e destruição de meios de subsistência das comunidades circunvizinhas, nenhum benefício plausível e expressivo, trouxe para a vida daquelas comunidades que tem sido utilizadas como peças de xadrez para ceder espaço a exploração. A invasão do acampamento da Kenmare no dia 06 de Dezembro, no âmbito das manifestações pós-eleições, foi a demonstração clara da insatisfação da comunidade de Topuito e de Larde, que não conseguem perceber como e nem porquê, perderam suas terras para uma empresa que não trouxe nenhuma mudança positiva nas suas vidas.
A gota de água, reside na pior de todas as falsas promessas que o governo e a Kenmare fizeram as comunidades, que é a construção de uma ponte de ligação entre a localidade de Topuito e a Vila sede do Distrito de Larde. Tudo remonta a 2016, quando a Kenmare decidiu alargar a área de extracção de areias pesadas abrangido deste modo a floresta sagrada da comunidade, onde se situava o Monte Felipe. Esta floresta, de acordo com a crença local, era onde residiam os espíritos protectores e provedores da chuva, para além da capacidade de cura que eram atribuídas as águas que jorravam de uma fonte que existia no monte, representados por uma enorme serpente que habitava naquele monte.
De forma prolongada a comunidade resistiu a permitir actividades da empresa naquele ponto, porque se acreditava que a destruição do Monte Felipe e da floresta traria azar para a comunidade e que a liderança local não sobreviveria a tal sacrilégio. No entanto, com o apoio incondicional do governo a nível provincial foi feita uma reunião com os líderes tradicionais que culminou com a entrega do local sagrado a Kenmare, facto interessante de ressaltar é que, imediatamente após a assinatura dos documentos, o régulo morreu. Terá sido a fúria dos espíritos, ou outra razão qualquer?! Não se sabe.
O facto é que em troca do local sagrado estava prevista a construção da ponte de conexão entre a localidade de Topuito e a Vila sede do distrito de Larde. Importa referir que para além de desempenhar um papel cultural e tradicional sagrado, servia igualmente de “farol” que permitia aos pescadores em alto mar identificar terra firme e não se perderem no seu caminho de regresso a casa. O consenso a alcançar era no sentido de expansão da área a explorar, mas preservando-se um espaço mínimo de respeito pelos valores e crenças da comunidade, no Monte Felipe, mas como sempre, o interesse das comunidades mais uma vez foi negligenciado e hoje nada resta do monte Felipe, a não ser o monte de areia branca e insípida que sobra após serem sugadas todas as suas propriedades pela ambição capitalista desmedida das máquinas.
É por esta e outras razões que o acampamento foi invadido, o avião perseguido, os carros levados a força para fazer parte da manifestação em Moma e a Kenmare forçada a assinar o acordo de arranque da construção da ponte prometida em 2016. Da mesma forma, que a Kenmare forçou aos líderes tradicionais a cederem o monte com o apoio do governo, desta vez foi forçada a cumprir com a sua palavra e a fazer o mínimo depois de anos de toneladas de areias pesadas exploradas e de milhões de lucros amealhados.
Na referida segunda-feira, dia 09 de Dezembro, dia em que supostamente se lançaria mais uma vez a primeira pedra para a construção da ponte, a comunidade foi surpreendida com um forte contingente militar que não hesitou em abrir fogo contra os manifestantes e a empresa declarou a imprensa que a situação estava controlada.
Muitos questionam de onde vem tanto ódio, tanta raiva que se vê no semblante dos manifestantes? Esta vem de anos de exploração sem retorno, falsas promessas e corrupção descarada. É importante ressaltar que situações semelhantes ocorreram em Palma, na península de Afungi, onde após meses aguardando por receber a sua compensação a comunidade de Macala e de Mangala, teve que bloquear os portões da empresa TotalEnergies, durante duas semanas para que finalmente se começasse a prestar atenção as preocupações e reclamações da comunidade que já vem sendo apresentadas a empresa que tem vindo a ignorá -las desde o ano passado.
Há quem pode questionar o que os investimentos estrangeiros tem a ver com os problemas eleitorais, uma vez que só trazem mais postos de trabalho e dividendos para o país?! No entanto, estes tem tudo a ver com a representação de poder e exploração das camadas sociais mais desfavorecidas, representam a exclusão no acesso ao emprego para os jovens locais. Estes investimentos cometem atropelos as leis e são protegidas por este governo, actuam em parceria para destruir os meios de subsistência das comunidades e difundir falsas promessas.